quinta-feira, 28 de abril de 2011

conto

Na televisão, um jogo velho de Domingo. O vento adentra por uma fresta na janela de madeira polida, espantando as moscas que rodeiam as sobras do almoço.
Lá fora está a pequena Sophia brindando seu décimo terceiro aniversário. Sozinha, admira a vastidão de uma enorme flamboyan.
O laço vermelho, que cobre parcialmente seus cabelos, enfatiza as pequenas sardas que cobrem o seu rosto juvenil.
Olha tentando avistar o topo da árvore. Será que um dia vou conseguir subir lá em cima? Pensa, com os olhos já entretidos nas minhocas expostas ao sol. Se eu salvar essas minhocas, será que vou para o céu?
Suas mãos, até então limpas, amparam as minhocas de volta à úmida e cheirosa terra. Nunca soubera o cheiro que a terra tinha, mas gostava muito. Era como um perfume natural. Algo que não poderia ser vendido e nem encontrado. Somente ali na terra.
As moscas, não satisfeitas, vasculham as redondezas da casa. Observam – apesar da pouca claridade – um casal.
- O que você pensa que está fazendo?
- Vou embora.
- Como assim, embora?
- Vou embora. Em-bo-ra.
Com um violento tapa no ar, o homem espanta as moscas que o rodeiam.
- Covarde, é isso que você é. Um covarde.
- Me chame do que quiser.
- Como tem a coragem de abandonar sua filha?
- Vejamos bem, de covarde fui para corajoso. De corajoso vou ir para o quê? Herói?
Suas gargalhadas são extremamente altas, impondo um ar de superioridade no quarto.
- Você é um monstro...
- Sim, todos somos. A humanidade é um monstro.
- Você é o pior de todos.
- Devo ser. Sou tão ruim que fui logo gerar uma filha autista. Olha para aquela menina. Conversando com minhocas. Patético.
A mulher, com o rosto lavado de lágrimas, levanta sua pequena mão e atinge o rosto do homem com uma fúria que apenas uma mãe poderia partilhar.
Agora, amedrontado, o homem volta os olhares para o chão. Pára alguns instantes e logo volta para o armário em busca de suas roupas.
Em desespero, a mulher se ajoelha.
- Por favor, não vá. Não vá, não vá...
Insignificante aos olhos do homem que, além de furioso pelo tapa recebido, vergonhosamente humilhado em sua própria casa. Pega sua última peça de roupa e tenta enfiar na mochila abarrotada.
Com a ajuda do armário, a mulher levanta-se e caminha em direção à cozinha.
Sobre a cama, o marido tenta fechar o zipper da mochila.
A tevê urra algum gol do Brasil. Sophia escuta mas mesmo assim continua brincando lá fora. Agora admira as próprias mãos, pensa em ser atriz, desenhista, alguma coisa que envolva a arte. Mas mamãe diz que os artistas não vão para o céu. Então decide ser professora. Ou melhor, diretora da escola.
Sophia ouve gritos, mas imagina que seja comemoração. Não ligava pra futebol, nem sabia quem estava jogando. Não gostava muito de ver tevê. De repente algumas moscas pousam-lhe no braço. Tenta afasta-las. Não saem. Não posso matar, pensa. Não quero ir para o inferno.
Entra em casa aos berros. Dizendo que havia feito amigas moscas. Grita pelo papai, grita pela mamãe. Não vê ninguém. Senta-se no sofá e observa um velho jogo de Domingo com suas novas amigas.